Os dois lados da moeda
Um lado da moeda
Não é novidade para ninguém que a Argentina está passando por sérios problemas - mesmo campeã da Copa do Mundo, quem diria? Vamos fazer uma breve retrospectiva para entender o que precisou acontecer para chegar ao ponto das promessas políticas do atual presidente do país (o liberal Milei) passarem por fechar o banco central, dolarizar a economia, facilitar a venda de órgãos, fundir os ministérios da educação e saúde, etc.
A Argentina vem optando por se financiar através de endividamento externo desde a década de 70, tanto em regimes militares - Junta Militar/Martinez de Hoz (1976-1983) -, quanto em governos democraticamente eleitos, sejam eles peronistas (Menem/Cavallo durante 1989-1999) ou não (Macri 2015-2019). Parece novidade mas não é.
Os três governos citados anteriormente têm em comum a política de abertura da conta financeira do balanço de pagamentos, com o apoio (dinheiros!) do FMI. O problema dessa estratégia de recorrer ao endividamento externo crescente é que a regra de "quanto mais, melhor" definitivamente não é verdade.
A palavra externa, em dívida externa, faz muita diferença nesse caso. Suponhamos que ao invés de pegar dinheiro emprestado com o FMI, o governo argentino recorresse ao mercado interno para financiar sua dívida. Nesse caso, como existe no quintal do Governo uma impressora de pesos à disposição, fica fácil quitar qualquer dívida, nominalmente pelo menos, basta imprimir mais moeda.
Tio Ben diria a Peter Parker, se ele fosse Diretor do BC, que com grandes impressões, vêm grandes inflações. Ou seja, o dinheiro chega na mão do credor, mas se ele quiser pagar o seu pan en la chapa com Pesos ou dinheiro do Banco Imobiliário, vai fazer pouca diferença. É a famosa monetização da dívida, ou imposto inflacionário. Quando o seu empréstimo está denominado numa moeda para a qual lhe falta uma impressora, o buraco é mais embaixo. Ou você paga, ou você dá um calote. E como o seu querido vizinho agiota pode testemunhar, emprestar dinheiro para caloteiro não é barato.
Mas por que alguém faria isso? Da mesma forma que ninguém acreditava no menino que gritou “Lobo!” pela décima vez, ninguém mais acredita no Governo que gritou “Prometo que não inflaciono de novo!”. E o governo argentino se vê obrigado a optar pela estratégia de apagar o incêndio com um lança-chamas, emitindo mais dívida externa e imprimindo dinheiro para quitar as obrigações internas.
No começo os déficits da balança de pagamento podem ser financiados com mais dívida externa - e todos podem ser felizes para sempre. Onde “sempre” quer dizer até o final do mandato. Acontece que alegria de endividado dura pouco. Para ilustrar esse crescimento vertiginoso, voltamos aos períodos que mencionamos anteriormente:
1) nas décadas de 1976-1983 a dívida externa Argentina passou de US$9 bilhões para US$46 bilhões, aumento de 500%, enquanto o PIB aumentou 12%.
2) Em 1989-1999 o aumento da dívida externa foi de 230%, passou de US$65 bilhões para US$152 bilhões, com 45% de aumento do PIB.
3) Já em 2015-2019 a dívida externa passou de US$177 bilhões para US$280 bilhões, aumento de 60%, com uma queda do PIB de 4%.
O endividamento externo é como um cartão de crédito internacional: no início, você sente que tem recursos ilimitados, só que a conta chega porque o endividamento externo não pode crescer infinitamente. Já que crédito sem crescimento é esquema de pirâmide. Explicamos:
Comparar o tamanho da dívida com o PIB é essencial porque o papel de pegar dinheiro emprestado é usá-lo para desenvolver o país, gerar mais receita, e com ela pagar o seu credor. No empréstimo correm juros, mas se a taxa de crescimento do país for maior do que a taxa do empréstimo, a conta fecha. As novas receitas geradas pelos investimentos são usadas para quitar as dívidas e o “feliz para sempre” dura para além do final do mandato.
Acontece que se o investimento é ineficiente, temos esse cenário desastroso. E como “caos econômico” não estampa manchete de programa político de ninguém, é corriqueiro ceder à tentação de pagar mais de 70% das contas de água e luz dos seus eleitores para evitar a fadiga de ter que contratar o caminhão de mudança e tirar seus trapos da Casa Rosada.
Para piorar a brincadeira, a taxa de conversão de Pesos em Dólares também entra na conta, afinal, se o país não cresce, ele não exporta e se ele não exporta, entram menos dólares e o peso perde valor. O fluxo de moeda estrangeira debilitado produz aquelas políticas de controle câmbio, conhecidas como cepo cambiario, ou seja, a tentativa de controlar o fluxo de moeda estrangeiras e proteger as reservas cambiais em declínio.
Quando a taxa de câmbio se deprecia demais, todos começam a desconfiar mais ainda da moeda local - é aquele momento em que o peso está tão desvalorizado que, se cair no chão, talvez não valha o esforço de se abaixar para pegar -, seja pelas dúvidas sobre as políticas do governo, nível das reservas em moeda estrangeira, taxas de impressão de moeda, ou choques externos. Ainda por cima, a moeda local acaba perdendo não só o seu poder de compra como também o seu papel de unidade de conta e o dólar gradualmente assume como moeda forte que todos querem usar como base. É a completa desmoralização do conceito de “Política Monetária”, juntamente com o descrédito do Banco Central, que passa longe de cumprir o seu papel de guardião da estabilidade da moeda.
Com essa crise de confiança na moeda local, toda a ênfase no combate à inflação passa muito pela estabilidade cambial, uma vez que os preços passam a ser referenciados em dólar.
No fim, a Argentina paga o preço por usar o endividamento externo para baratear a taxa de câmbio, excessivos gastos do governo e enfraquecimento da economia real.
Em meio ao turbilhão econômico na Argentina, marcado por uma inflação astronômica de 211,4% em 2023 — o pico das últimas três décadas —, moedas alternativas surgem como protagonistas em um cenário de incertezas. Historicamente, o dólar tem sido a estrela dessa fuga da volatilidade do peso. No entanto, com a ascensão da era digital, um novo player entrou em campo: as criptomoedas!
O relatório da Chainalysis trouxe um gráfico que mostra claramente como a tendência de compra de criptomoedas está fortemente correlacionada com o valor da moeda argentina. A tendência de compra de criptomoedas disparou à medida que a Argentina cruzou a marca dos 100% de inflação nos últimos 12 meses, não vista desde 1991, em fevereiro de 2023.
Tá, mas por que as criptomoedas se tornaram tão atrativas para os hermanos? O principal motivo é porque elas se tornaram uma válvula de escape viável para a bagunça na política monetária. Com inflação galopante e restrições à compra de moedas estrangeiras (cepo cambiario), as criptomoedas vêm como um fio de esperança para a preservação do poder de compra do cidadão comum.
A mão invisível do mercado argentino tem se inclinado para as exchanges descentralizadas (DEX), que oferecem uma maneira mais rápida e menos burocrática de criar carteiras digitais. Além disso, permitem a compra de criptomoedas usando moedas convencionais. Elas representam cerca de 30% do mercado cripto na Argentina e esse movimento deve aumentar mais ainda, em face às restrições impostas às exchanges centralizadas - similares a bancos digitais que exigem documentação para cadastro - após a implementação do chamado “megadecreto” de Milei, que limitou a aquisição de criptomoedas pelas exchanges centralizadas.
Na prática, a maior parte da população recorre a carteiras digitais em exchanges para transacionar criptomoedas. Mas, um fenômeno interessante são as crypto caves, que são análogas às tradicionais "cuevas" que compram e vendem dólares no mercado negro. Na prática são estabelecimentos ou redes informais que operam paralelamente, oferecendo serviços de câmbio de criptomoedas, principalmente Bitcoin, por moeda - peso ou dólar.
Essa situação tem incentivado até mesmo pequenos comerciantes a adotarem sistemas de pagamento baseados em criptomoedas. Hoje não é incomum esses pequenos comerciantes contarem com aqueles quadradinhos amigáveis - QR Codes - próximos aos caixas para habilitar os pagamentos com criptomoedas. Afinal criptomoedas não têm decretos presidenciais desvalorizando-as em 54% de um dia para o outro.
Quem deu um pulo nas terras dos nossos vizinhos Argentinos muito provavelmente vivenciou a experiência de andar com bolos de dinheiro na mochila, caso tenha usado os métodos tradicionais de pagamento. Outros mais antenados optaram por fazer as suas transações de pagamentos por meio de stablecoins - você carrega o app com sua moeda local, nesse caso o real, e ele as transaciona para stablecoins pareadas no dólar e que são aceitas até em pequenos estabelecimentos, como comentei anteriormente. Essa dinâmica só é sustentável porque os argentinos confiam em criptoativos e o viram como alternativa viável para se proteger.
Outro ponto de destravamento muito interessante é que as maquininhas de cartão de crédito não só já aceitam as transações em criptomoedas como também fazem a transferência equivalente ao comerciante na moeda local ou até mesmo em dólar - o futuro é cripto? Quem já faz isso por aqui é o app Foxbit Pay, que permite cobrar em criptomoedas e habilita o estabelecimento receber como quiser, em cripto ou em moeda local. O futuro é agora?
Já em 2022 os argentinos tentavam driblar a inflação galopante optando por receber os salários em criptomoedas. O país já tinha maior parcela de empregados pagos em criptomoedas do que qualquer outro, de acordo com a Deel (empresa especializada em folha de pagamento e que opera em 150 países). Aqui a ideia é que se o funcionário recebesse em criptomoeda, a troca para peso poderia ser feita pela taxa de câmbio paralela, que é muito mais atrativa do que a oficial além de ser feita gradualmente, reduzindo a exposição ao Peso, que deprecia mais rápido do que carro elétrico quando a bateria começa a dar problema.
Esse viés libertário do Milei casa muito bem com as ideias de criação do Bitcoin. O Bitcoin foi criado como uma resposta às falhas percebidas nos sistemas financeiros centralizados, idealizado como uma reserva de valor, uma proteção ao mercado e um ativo anti-inflacionário. Opera em uma rede descentralizada chamada blockchain, onde as transações são validadas por uma rede de nós, em vez de uma autoridade central como um banco ou governo, aqui os bancos centrais não têm o poder de influenciar a oferta monetária - mais liberal que isso impossível.
O outro lado da moeda
Em economias com o cenário macroeconômico mais estável, como a do Brasil, vemos a adoção das criptomoedas tomando contornos bem diferentes do que as da Argentina.
Por aqui os criptoativos funcionam em conjunto com as soluções tradicionais adotadas no país. Não precisa ser uma substituição dos meios de pagamentos tradicionais porque esses funcionam muito bem - obrigado -, mas podem trazer mais tecnologia a um sistema bem estabelecido.
Um belo exemplo dessa configuração é o Drex (mais detalhes na última Condado Tech), moeda digital brasileira, trazendo a tecnologia do mundo cripto para a moeda oficial do país. Nesse caso, o mundo cripto se torna um aliado e não uma rota de fuga, como no caso da Argentina.
O DREX é um ótimo exemplo de como um banco central pode explorar a tecnologia do Bitcoin e de outras criptomoedas para aprimorar o sistema monetário. Este avanço ultrapassa a noção comum de que o universo cripto é somente um terreno para especulação financeira. Na verdade, revela o potencial das criptomoedas em contribuir para inovações estruturais em sistemas monetários e financeiros.
A nossa parceira Foxbit foi a primeira empresa do mundo cripto a participar do projeto. A participação ativa no DREX demonstra como uma empresa nativa do mundo cripto pode contribuir significativamente para o desenvolvimento e aprimoramento do sistema monetário e financeiro nacional.
E ainda na esteira de órgãos governamentais abrindo espaço para criptomoedas, no início deste ano, o universo das criptomoedas foi agraciado com uma notícia extraordinariamente positiva: a SEC, o órgão regulador do mercado financeiro nos Estados Unidos, deu luz verde para a criação de ETFs de Bitcoin. Essa decisão é um marco significativo, pois os Exchange-Traded Funds (ETFs) abrem um portal de oportunidades tanto para investidores do varejo quanto investidores institucionais.
A chancela dos ETFs de Bitcoin por grandes gestoras de ativos como BlackRock, Fidelity ARK Investment Management, também legitima ainda mais o Bitcoin como uma classe de ativos desejável. Isso deve atrair um fluxo maior de capital institucional para o mercado de criptomoedas, aumentando sua liquidez e, possivelmente, sua estabilidade. Agora o bitcoin entra para o hall dos participantes do setor financeiro tradicional, estabelecendo-se não apenas como uma moeda digital, mas também como uma opção de investimento robusta e reconhecida.
O Bitcoin caindo 10% na semana após a aprovação do ETF só serve para incrementar o rol de exemplos de quem adora falar que no Mercado Financeiro o preço “sobe no boato e cai no fato” - esteja bem informado, a gente te ajuda nessa.
Deste modo, o contraste entre as motivações para a adoção de criptomoedas na Argentina e no Brasil revela uma realidade complexa e interessante para os ativos digitais. Na Argentina, as criptomoedas emergem como uma solução frente à turbulência econômica e à política monetária instável - usando a moeda da forma como foi originalmente concebida. Já no Brasil, a adoção das criptomoedas e a implementação do DREX representam um avanço tecnológico que acontece de mãos dadas com os órgãos governamentais. De qualquer modo, a narrativa que se desdobra é que criptomoedas não se restringem apenas à especulação. Ambos os países estão explorando suas potencialidades, cada um à sua maneira, revelando o amplo espectro de aplicabilidades e benefícios que esses ativos digitais podem oferecer.